Programas de inteligência artificial (IA) já estão tomando decisões em diferentes processos do Judiciário e no trabalho de escritórios de advocacia. Aos profissionais do direito, nestes casos, resta apenas a tarefa de conferir e, em seguida, confirmar ou não as orientações sugeridas pelos softwares.

A IA também já realiza ações como ler, interpretar, selecionar e elaborar documentos jurídicos, modificando o perfil de atividades em tribunais e bancas de advogados. Segundo a versão mais recente do levantamento “Justiça em Números”, realizado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), 108,3 milhões de causas tiveram início em versão digital de 2008 a 2018 no país.

Todo esse montante é um farto material para que os sistemas de IA e robôs possam coletar dados, identificar padrões e classificar as informações que interessam para cada tipo de profissional do direito.

No Judiciário de Pernambuco, por exemplo, um sistema de IA atualmente realiza o exame de novas ações de execução fiscal e decide quais delas estão de acordo com as regras processuais e quais estão prescritas, diz o juiz de direito José Faustino Macêdo, da Vara de Executivos Fiscais de Recife.

Macêdo utiliza no dia a dia o sistema, batizado de Elis, e diz que, após conhecer ferramentas tecnológicas de outros tribunais do país, classifica o sistema local como o único que “usa inteligência artificial no processo decisório”.

“Elis de certa forma decide. Ela diz se o processo está ok ou não, e bota na minha caixa para eu assinar. É como se me substituísse até. Agora, não digo que ela me substitui porque eu tenho que parar, logar e posso olhar, verificar se está certo ou não”, afirma Macêdo.

De acordo com o magistrado, nos processos há sempre uma menção expressa sobre o uso da IA. Por meio de etiquetas, por exemplo.

“No texto da própria decisão está dizendo que foi Elis quem fez, para permitir transparência no processo, para que se saiba o que está sendo usado. O sistema precisa ser auditável, ter accountability [termo em inglês que significa possibilidade de ser fiscalizado], pois não é escuso ou escondido de ninguém.”

O sistema de IA na Justiça de Pernambuco foi criado em 2008 e alimentado com dados provenientes das cerca de 450 mil execuções fiscais que estavam em andamento à época no Recife, referentes principalmente ao não pagamento de IPTU e ISS.

Segundo Juliana Neiva, secretária de Tecnologia da Informação e Comunicação do tribunal, o desenvolvimento da IA teve custo zero para a corte, pois foi desenvolvido por servidores do próprio órgão.

OUTROS EXEMPLOS

Em outros tribunais do país também há iniciativas tecnológicas, com dois focos principais: reunir processos que tenham os mesmos temas jurídicos, para decidi-los em conjunto, e automatizar tarefas para acelerar a tramitação das causas.

No STJ (Superior Tribunal de Justiça), o sistema de IA recebeu o nome de Sócrates e foi “treinado” com uso dos dados de 300 mil decisões da corte, segundo a assessoria do tribunal. Agora a IA “lê” os processos novos e agrupa aqueles com assuntos semelhantes, para que possam ser julgados em blocos. O software também é usado na triagem para barrar a entrada de alguns tipos de causas que não tenham relação com as atribuições do tribunal.

Essa barreira digital é importante porque a Justiça brasileira criou uma categoria denominada demanda repetitiva, que se aplica a todo o processo que tenha como tema uma questão jurídica comum a outros milhares de processos. São temas jurídicos que envolvem milhões de pessoas, como reajustes de planos de saúde ou índices de correção de taxas públicas.

São temas jurídicos que envolvem milhões de pessoas, como reajustes de planos de saúde ou índices de correção de taxas públicas. Nesse tipo de situação, a identificação de uma apelação como demanda repetitiva faz com que ela seja devolvida ao tribunal de origem nos estados. Quando sai a sentença do tribunal superior sobre o assunto, cada corte estadual é que irá aplicar a decisão judicial a cada caso.

O STJ quer ir mais longe no uso da tecnologia e relata que já está em andamento o projeto Sócrates 2, no qual a ideia é avançar para que a IA em breve forneça de forma organizada aos juízes todos os elementos necessários para o julgamento das causas, como a descrição das teses das partes e as principais decisões já tomadas pelo tribunal em relação ao assunto do processo.

A meta é então levar aos magistrados uma espécie de cardápio de conteúdos selecionados para que eles escolham os mais adequados para montar a decisão judicial.

À medida que avança o uso da IA na área jurídica, também surge o debate sobre as questões éticas.

Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de SP e diretor do curso de direito da Faap, José Roberto Neves Amorim diz que a IA não deverá ser utilizada em alguns tipos de processos.

“Não podemos tirar em momento algum a sensibilidade humana do julgamento. Há causa que jamais poderão passar por máquinas, como as causas de família. Para um problema de guarda de filho, não há uma fórmula. Para esse tipo de caso há uma série de circunstâncias que só o ser humano vai conseguir definir”, diz Amorim.

O mesmo impedimento deve ser aplicado às causas penais, segundo o desembargador aposentado do TJ-SP. “No processo criminal, você tem que olhar para o réu, ver a testemunha. O juiz sente a pessoa que mente ou fala a verdade. A liberdade das pessoas é um bem absoluto para a humanidade”, afirma.

ESCRITÓRIOS DE ADVOCACIA

Nas bancas jurídicas, o principal benefício da IA vem do processamento de milhares de sentenças, depoimentos e petições, o que permite ao advogado saber como pensa cada juiz, o que fala cada testemunha, quais provas são mais aceitas pelos magistrados e como se comportam as partes adversárias.

Com base nesses dados, a IA já decide e indica qual o melhor caminho a seguir: fazer um acordo para encerrar a causa ou continuar a disputa jurídica.

Os dados garimpados pelos sistemas digitais levam advogados a se colocarem mais como estrategistas e menos como eruditos no conhecimento jurídico.

Nessa nova era vale apresentar ao cliente um relatório com uma previsão quase certeira sobre os caminhos para o sucesso no processo, com estatísticas e gráficos sobre o índice de condenações de uma determinada vara trabalhista. Isso em vez de exibir um diploma de doutorado ou novo livro de um integrante da equipe de defensores.

Em escritórios que atuam em defesa de clientes com milhares de processos pelo país, como grandes redes e operadoras de telefonia (setor conhecido como “contencioso de massa”), a tecnologia é invocada até mesmo em meio ao calor das audiências judiciais.

Em alguns tipos de processos, os nomes das testemunhas só são revelados na hora da audiência, o que dificulta a vida das partes da causa.

Para lidar com esse problema, o escritório Lee, Brock e Camargo Advogados (LBCA) desenvolveu um aplicativo ligado a um sistema de IA. O mecanismo possibilita levantar, logo após conhecer quem são os depoentes da parte adversária, tudo o que essas testemunhas já disseram em outros processos, afirma Solano de Camargo, sócio fundador do LBCA.

Em segundos, a IA também avisa quais são as contradições nas quais essas testemunhas já incorreram eventualmente em outras causas. É possível então mostrar de imediato ao juiz se um depoente fica mudando sua versão a cada processo, o que torna muito mais fácil derrubar a tese jurídica da parte contrária.

O sistema de IA do escritório foi batizado de Diana e já consumiu investimentos de R$ 3 milhões nos últimos anos, diz Camargo. O custo inclui a implantação de um laboratório de tecnologia interno que conta com 41 integrantes.

Renato Mandaliti, sócio do Mandaliti Advogados, que investe em ferramentas tecnológicas desde o fim da década de 1990, diz que surgiu uma nova função para os advogados nesse tipo de banca jurídica: trabalhar ao lado de programadores para “ensinar” a IA.

No jargão técnico da informática, a atividade recebe o nome de “machine learning”. Nela, os profissionais do direito colaboram com os técnicos para criar algoritmos que possibilitem diferenciar, por exemplo, quando um magistrado faz uma citação a uma outra decisão judicial, que serve como precedente, e quando efetivamente sentencia na causa judicial.

Nesses escritórios, o trabalho é organizado em linhas de montagem, e termos como “setor de logística” e “esteiras”, normalmente usados na indústria e no comércio, passaram a fazer parte do vocabulário do ambiente profissional, segundo Mandaliti.

Nas bancas jurídicas, a categoria que mais sofreu impacto com o avanço tecnológico foi a dos estagiários. Antes uma espécie de faz-tudo, com tarefas burocráticas e repetitivas que muitas vezes incluíam a compra de lanche para os chefes no bar da esquina, agora esse profissional em início de carreira trabalha mais focado em atividades intelectuais criativas, como a elaboração das peças jurídicas.

A estagiária do LBCA Bruna Santos Ribeiro Silva, estudante do 4º ano da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, diz que o estagiário hoje não é mais aquela pessoa que faz serviços administrativos, como levar petições ao fórum, ir ao banco para pagar custas ou digitalizar processos. “Agora sobra tempo para fazer peças e estudar os casos.”

A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL (IA) NO JUDICIÁRIO E NA ADVOCACIA

O que é Inteligência Artificial
IA (Inteligência Artificial) é uma forma de imitar a inteligência humana e o processo de aprendizado humano em máquinas. Às vezes é também capaz de tomar decisões.

Como a IA pode ser usada?
A IA está presente em tecnologias como chatbots, assistentes virtuais (Siri e Google Assistente, por exemplo), games, edição de imagens, alguns eletrodomésticos, detecção de doenças, recomendação de filmes em aplicativos etc.

Um eletrodoméstico automático, como uma lava-louças, não usa IA necessariamente. Prova disso é que, caso cometa um erro, ela continuará lavando errado de acordo com função pré-programada, sem aprender com esse desempenho.

Quais as ferramentas do meio jurídico?
Uma das técnicas que ajudaram a impulsionar a IA se chama “machine learning”. Com ele, o computador examina grandes conjuntos de dados para detectar padrões nas informações.

No Brasil, a principal fonte para alimentar os programas de IA é o acervo de quase 110 milhões de causas que tiveram início em versão digital a partir de 2008 no país.

Esse enorme banco de dados permite que os sistemas de IA e robôs possam coletar dados, identificar padrões e classificar as informações que interessam para cada tipo de profissional do direito, além de decidir quais medidas a adotar nos processos e elaborar documentos jurídicos.

Como funciona a IA na Justiça
Nos processos novos, os programas de inteligência artificial já realizam as seguintes tarefas:

– “Ler” as petições iniciais dos casos e agrupar aqueles com assuntos semelhantes, para que possam ser julgados em blocos;

– Nos tribunais superiores, identificar as ações que se enquadram na categoria denominada demanda repetitiva (processo com tema jurídico comum a outras milhares de causas, como reajustes de planos de saúde) para que sejam devolvidas aos tribunais estaduais;

– Em execuções fiscais (ações de cobrança de impostos), decidir quais delas estão de acordo com as regras processuais e quais estão prescritas.

Exemplos de uso: em Pernambuco, na Vara de Executivos Fiscais de Recife, um programa batizado de Elis faz o processamento inicial dos processos e entrega para os juízes despachos prontos, que só precisam ser conferidos e assinados pelos magistrados.

Como funciona a IA nos escritórios de advogados
Nas bancas jurídicas, os programas de inteligência artificial já desempenham as seguintes atividades:

– Analisar milhares de sentenças, depoimentos e petições de processos em formato digital;

– Preparar relatórios sobre a forma de decidir de cada juiz;

–  Identificar testemunhas que mais comparecem a audiências e descobrir eventuais contradições em seus relatos;

–  Apontar quais tipos de provas são mais aceitos pelos magistrados;

– Com base nos vários elementos de um determinado processo, indicar se a melhor estratégia é fazer um acordo, e encerrar a causa, ou prosseguir na demanda judicial.

Exemplos de uso: O escritório Lee, Brock e Camargo Advogados (LBCA), de São Paulo, desenvolveu um sistema de IA e um aplicativo conectado a ele. Os advogados da banca podem abrir o aplicativo no decorrer de audiências e usar as análises do software para identificar, por exemplo, contradições de uma testemunha enquanto ela fala ao juiz.